Há livros que sobrevivem porque são belos; outros, porque são úteis; alguns poucos, porque são perigosos. A Ilíada pertence a essa última categoria. Ao recontar o poema fundador da literatura ocidental em prosa clara e vigorosa, Nick McCarty não tenta atualizar Homero — ele o reinsere no presente, onde a guerra continua sendo narrada como destino, espetáculo e necessidade.
Publicada no Brasil pela Editora Melhoramentos, sua adaptação não é um exercício de simplificação, mas de mediação cultural. McCarty compreende que o leitor contemporâneo já não aceita hexâmetros nem genealogias infinitas, mas continua fascinado por aquilo que o épico oferece em abundância: homens levados ao limite, a promessa ilusória da glória e a percepção tardia de que toda vitória cobra um preço irreparável.
Ler a Ilíada hoje é reconhecer que o texto não envelheceu — fomos nós que aprendemos a ignorá-lo melhor.
Aquiles permanece como uma das figuras mais desconcertantes da literatura. Ele não luta por justiça, nem por pátria, nem por amor. Luta porque sabe que seu nome sobreviverá apenas se sua vida for curta. Sua consciência do destino o torna menos humano e mais trágico: Aquiles escolhe a fama como quem escolhe um suicídio lento e aplaudido.
McCarty destaca esse traço com precisão cirúrgica. Aquiles não é impulsivo — é coerente. Sua ira não nasce da guerra, mas da humilhação. Quando Agamenon lhe toma Briseida, o conflito revela sua verdadeira engrenagem: a guerra não se move por causas elevadas, mas por egos feridos.
Em oposição, Heitor é o herói que a guerra não merece. Ele luta porque não lutar seria abandonar tudo o que o define: a cidade, o pai, a esposa Andrômaca, o filho pequeno. Sua grandeza não está no desejo de vencer, mas na lucidez de que não há vitória possível. Quando Heitor cai, não morre apenas um guerreiro — morre a última justificativa moral do conflito.
A Ilíada costuma ser citada como uma matriz da chamada jornada do herói, conceito sistematizado por Joseph Campbell no século XX. Aquiles, à primeira vista, cumpre vários requisitos do arquétipo: origem semidivina, habilidades extraordinárias, chamado inevitável para a batalha, provas sucessivas e um clímax violento que o consagra como figura lendária.
Mas Homero — e McCarty, ao respeitar essa arquitetura — oferece algo mais inquietante: a desconstrução da jornada. Aquiles não retorna ao lar transformado para curar a comunidade. Ele não aprende a dominar sua fúria; ele a radicaliza. Sua trajetória não é ascendente, mas centrífuga — tudo ao seu redor se desfaz à medida que ele se aproxima da glória.
O momento decisivo da narrativa não ocorre quando Aquiles mata Heitor, mas quando aceita devolver seu corpo ao rei Príamo. Ali, o herói não conquista nada: ele reconhece, tarde demais, que a jornada prometia transcendência e entregou apenas vazio. A Ilíada ensina que o herói clássico não amadurece — ele se consome.
Esse é um ensinamento profundamente moderno.
A Guerra de Troia não é apenas um mito fundador; é um modelo narrativo da violência organizada. Nela estão inscritos elementos que continuam estruturando os conflitos contemporâneos: alianças frágeis, lideranças vaidosas, soldados transformados em números, e uma retórica que transforma massacre em destino.
Os deuses, tão presentes na Ilíada, não são símbolos de fé, mas de arbitrariedade. Eles interferem na guerra como hoje interferem mercados, ideologias, interesses geopolíticos. A mensagem é clara: o campo de batalha nunca pertence aos que sangram.
McCarty preserva essa dimensão estrutural do texto. Ao evitar romantizações, sua adaptação evidencia que a guerra não nasce do rapto de Helena, mas da incapacidade humana de aceitar limites. Troia cai não por estratégia, mas por exaustão moral.
Por isso a Ilíada continua atual. Ela reaparece em Verdun, em Hiroshima, no Vietnã, no Oriente Médio, na Ucrânia. A tecnologia muda; a lógica permanece. A guerra segue sendo apresentada como exceção, quando na verdade é um padrão recorrente da civilização.
Há livros que sobrevivem porque contam uma boa história. A Ilíada sobrevive porque ensinou o Ocidente a pensar por metáforas. Na adaptação de Nick McCarty, publicada pela Editora Melhoramentos, essas imagens ancestrais não aparecem como relíquias didáticas, mas como estruturas vivas, prontas para serem reconhecidas pelo leitor moderno — ainda que ele não saiba exatamente por quê.
O épico de Homero não oferece conceitos abstratos; oferece imagens tão precisas que se tornam linguagem cotidiana. Dizemos “calcanhar de Aquiles”, “cavalo de Troia”, “ira de Aquiles” sem perceber que, ao fazê-lo, estamos recorrendo a modelos arcaicos para compreender o presente.
Aquiles é o ápice da potência humana em combate. Mas sua quase imortalidade carrega uma falha mínima, invisível, letal. O calcanhar não é um erro do destino; é a consequência inevitável da exceção. Quanto mais absoluto o poder, mais concentrada a vulnerabilidade.
Essa metáfora atravessa os séculos porque descreve um padrão recorrente da experiência moderna. Empresas, governos, líderes e indivíduos raramente ruem por fraqueza geral. Eles caem por um ponto específico, negligenciado justamente por parecer irrelevante diante da grandeza do todo.
Na psicologia contemporânea, o calcanhar de Aquiles aparece quando uma identidade inteira se constrói em torno de um único atributo — sucesso, produtividade, inteligência, controle. Quando esse atributo é ameaçado, tudo colapsa. A força não protege; expõe.
McCarty, ao recontar a história para novos leitores, preserva esse paradoxo fundamental: o herói não morre apesar de sua grandeza, mas por causa dela.
Se o calcanhar fala da fragilidade interna, o cavalo de Troia fala da ameaça que se disfarça de presente. Incapazes de vencer Troia pela força, os gregos vencem pela narrativa. O cavalo não invade a cidade; é celebrado, puxado para dentro, protegido.
Essa metáfora é talvez a mais assustadoramente atual. Na era digital, o cavalo de Troia se tornou literal: programas que entram em sistemas sob aparência inofensiva. Na política, ele assume a forma de discursos técnicos, emergenciais, “necessários”. Na vida pessoal, aparece como oportunidades que cobram um preço invisível.
A queda de Troia ensina que os muros não caem apenas por ataque, mas por confiança mal colocada. A vigilância relaxa justamente quando o perigo parece ter ido embora.
A flecha que atravessa as argolas: excelência, exclusão e o mito da igualdade
Entre as imagens do ciclo épico está a prova impossível: a flecha que atravessa argolas perfeitamente alinhadas — símbolo máximo de precisão, técnica e domínio. Não é força bruta; é controle absoluto. Poucos podem sequer tentar. Apenas um consegue.
Essa imagem ecoa com força no mundo contemporâneo, obcecado por desempenho, métricas e excelência contínua. Mas o mito é mais honesto do que o discurso moderno da meritocracia: nem todos têm acesso ao arco.
A Ilíada reconhece que talento sem condições é impotente, e que condições sem talento são vazias. A flecha só atravessa as argolas quando preparo, contexto e legitimidade coincidem. No mundo moderno, exige-se o feito sem oferecer o arco — e depois se pune quem erra.
A literatura de guerra nunca foi apenas um registro de batalhas. Desde a Ilíada, ela funciona como um laboratório moral onde sociedades testam seus limites — de obediência, de violência, de sentido. Ao longo dos séculos, os livros que retornam a esse tema não repetem Homero por reverência, mas porque continuam presos à mesma pergunta fundamental: o que acontece com o homem quando a guerra deixa de ser exceção e passa a ser método?
Se nos épicos antigos a guerra ainda podia ser narrada como destino ou glória, os romances modernos desmontam essa ilusão. O herói dá lugar ao soldado anônimo; o triunfo cede espaço ao trauma; a vitória se torna indistinguível da perda. Ainda assim, certos padrões persistem. A tensão entre honra e sobrevivência, o conflito entre obediência e consciência, a tentativa de justificar a violência por meio de narrativas superiores — pátria, dever, progresso — reaparecem com insistência quase ritual.
Esses livros dialogam entre si como ecos distantes de um mesmo acontecimento que nunca se encerra. Tolstói, Remarque, Hemingway, Vonnegut, Tim O’Brien — cada um à sua maneira reescreve a Ilíada, não em termos de enredo, mas de estrutura moral. A guerra continua sendo o espaço onde o indivíduo é diluído, testado, reduzido, e onde a linguagem frequentemente falha diante da experiência extrema.
O que muda, ao longo do tempo, não é o conflito em si, mas a forma de narrá-lo. A literatura abandona a celebração e se aproxima do esgotamento; troca o canto épico pelo testemunho; substitui o gesto heroico pela repetição mecânica da violência. A reincidência do tema revela menos fascínio do que incapacidade de superação.
Lidos em conjunto, esses livros não formam uma tradição gloriosa, mas uma genealogia do desgaste. Eles mostram que a guerra persiste não apenas porque é travada, mas porque é contada — e recontada — como necessidade histórica. A literatura, nesse sentido, não absolve nem resolve. Ela registra, insiste e devolve a pergunta ao leitor: por que continuamos produzindo homens para a guerra?
É a partir dessa herança — feita de ecos e reincidências — que a linha do tempo a seguir se organiza, não como progresso, mas como retorno.
Mais do que prêmios, a adaptação de Nick McCarty conquistou relevância pedagógica. Seu valor está na capacidade de introduzir leitores jovens e adultos ao épico sem diluí-lo. Escolas, bibliotecas e projetos de leitura utilizam essa versão como porta de entrada para discussões sobre ética, poder, masculinidade, violência e responsabilidade coletiva.
A Ilíada, nesse contexto, deixa de ser apenas literatura e torna-se educação moral sem moralismo — um raro espaço onde o leitor é convidado a pensar, não a concordar.
A tradição brasileira raramente glorifica o herói armado. Aqui, a guerra aparece como trauma, erro ou imposição histórica.
Em Os Sertões, Euclides da Cunha desmonta a noção de heroísmo ao mostrar soldados perdidos em um conflito que não compreendem. Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, revela a violência institucional como guerra silenciosa.
Erico Verissimo, em O Tempo e o Vento, apresenta batalhas como herança maldita transmitida entre gerações.
No Brasil, o herói de guerra não é celebrado — é interrogado. Talvez por isso nossa literatura dialogue tão bem com a Ilíada: ambas sabem que a violência nunca é limpa.
O cinema sempre se sentiu atraído pela Ilíada, mas raramente soube lidar com o que ela tem de mais incômodo. Desde Helena de Troia (1956), passando por Tróia (2004), com Brad Pitt como Aquiles, o audiovisual preferiu transformar o épico em espetáculo: batalhas coreografadas, heróis reconhecíveis, conflitos resolvidos pelo impacto visual.
Mesmo quando a televisão tenta recuperar alguma ambiguidade — como em Troy: Fall of a City (2018), com David Gyasi — a guerra tende a ser enquadrada como narrativa de entretenimento. A Ilíada literária segue outro caminho: não oferece alívio, não fecha feridas, não entrega redenção. Ao ser levada à tela, Troia quase sempre se torna imagem. No livro, ela permanece problema.
A força duradoura da Ilíada — e o mérito da adaptação de Nick McCarty — não está em atualizar a linguagem de um clássico, mas em preservar aquilo que jamais envelhece: as imagens que organizam nossa forma de pensar o mundo. O épico de Homero não sobreviveu porque fala de espadas, muralhas e deuses caprichosos, mas porque nomeou estruturas invisíveis que continuam operando sob novas máscaras.
O calcanhar de Aquiles permanece entre nós sempre que a confiança excessiva se transforma em ponto cego. O cavalo de Troia reaparece toda vez que a ameaça se apresenta como solução, conforto ou progresso inevitável. A flecha que atravessa as argolas continua a nos assombrar na exigência moderna de excelência absoluta — num mundo que cobra precisão sem garantir acesso ao arco.
Mas a Ilíada vai além dessas imagens consagradas. Ela nos lembra que guerras começam antes do primeiro golpe, no território da emoção: na ira de Aquiles, onde o orgulho ferido vale mais que vidas; em Pátroclo, que mostra como a guerra se espalha por contágio, vestindo corpos que não estavam preparados para ela; em Heitor, talvez o mais contemporâneo dos heróis, que luta não para vencer, mas para adiar o fim, sustentando um mundo que já sabe condenado.
Até os deuses da Ilíada continuam entre nós. Não mais com nomes olímpicos, mas como forças abstratas e impessoais — mercados, algoritmos, sistemas — que interferem, favorecem, punem e decidem destinos sem jamais prestar contas. A arbitrariedade divina foi apenas traduzida em linguagem técnica.
Ao reler Troia pelas mãos de McCarty, o leitor moderno percebe algo desconfortável: não avançamos tanto quanto imaginamos. Mudaram as armas, os discursos e as tecnologias, mas os mecanismos do conflito permanecem intactos.
Ainda construímos heróis para depois destruí-los; ainda confundimos honra com vaidade; ainda abrimos os portões quando acreditamos que a guerra terminou.
Talvez por isso a Ilíada continue sendo lida, recontada e reescrita. Não por nostalgia, nem por reverência acadêmica, mas porque ela funciona como um espelho implacável. Um livro que não oferece consolo, apenas reconhecimento.
Troia não caiu em ruínas. Ela se fragmentou e se espalhou — nas cidades, nas instituições, nas empresas, nas relações pessoais, nos conflitos íntimos. E enquanto continuarmos chamando nossas fragilidades de forças, nossas concessões de presentes e nossas exclusões de mérito, continuaremos vivendo dentro de seus muros.
Ler a Ilíada hoje não é revisitar o passado.
É reconhecer o terreno em que ainda estamos pisando.
A Ilíada não encerra a história. Ela a interrompe no momento mais incômodo: quando a guerra termina, mas suas consequências ainda não começaram a ser elaboradas. A continuação desse percurso está em A Odisseia, também atribuída a Homero — um poema menos sobre a guerra em si e mais sobre o que resta dela: o retorno, a errância, a memória, a dificuldade de voltar a ser quem se era.
Se a Ilíada narra a implosão do mundo pela violência, a Odisseia investiga o custo íntimo da sobrevivência. Ler uma sem a outra é compreender apenas metade da experiência. Para quem deseja seguir essa travessia — da batalha ao exílio, da glória ao cansaço — a leitura de A Odisseia é não apenas recomendada, mas necessária.
Leia mais sobre A Odisseia neste link: