Na Londres de 1763, onde o perfume da decadência se mistura ao cheiro acre da sobrevivência, a série Harlots nos convida a atravessar as cortinas de veludo de um bordel para descobrir que, por trás dos sorrisos sedutores e dos espartilhos apertados, pulsa uma guerra silenciosa por autonomia, poder e dignidade. Lançada em 2017, a produção britânica criada por Alison Newman e Moira Buffini é uma obra que desafia os limites do drama histórico ao colocar as mulheres no centro da ação — não como vítimas passivas, mas como estrategistas ferozes em um tabuleiro social onde o sexo é moeda e o corpo, território de disputa.
A gênese de Harlots está enraizada no trabalho meticuloso da historiadora britânica Hallie Rubenhold, autora de The Covent Garden Ladies. O livro, uma investigação sobre o infame Harris’s List of Covent Garden Ladies — um catálogo real de prostitutas londrinas do século XVIII — serviu de inspiração direta para a série. Rubenhold não apenas forneceu a base documental para a trama, como também atuou como consultora histórica durante as três temporadas da produção, garantindo autenticidade nos figurinos, cenários e, sobretudo, na representação das mulheres da época.
Ao iluminar vidas que a história oficial preferiu apagar, Rubenhold resgata a complexidade dessas mulheres, muitas vezes reduzidas a estereótipos. Harlots é, portanto, mais do que entretenimento: é um ato de justiça histórica.
No centro da narrativa está Margaret Wells (Samantha Morton), uma ex-prostituta que agora comanda seu próprio bordel e luta para garantir um futuro melhor para suas filhas, Charlotte (Jessica Brown Findlay) e Lucy (Eloise Smyth). Margaret é uma força da natureza: ambiciosa, pragmática e, acima de tudo, uma mãe feroz. Sua rivalidade com Lydia Quigley (Lesley Manville), a cruel e aristocrática dona de um bordel de elite, é o motor dramático da série — um embate entre duas visões de mundo, duas formas de exercer o poder feminino em um universo masculino e brutal.
Charlotte, a filha mais velha, é uma cortesã de luxo que transita entre os salões da elite e os becos escuros da cidade com a mesma desenvoltura. Sua trajetória é marcada por uma busca constante por liberdade, mesmo quando isso significa desafiar sua própria mãe. Lucy, por sua vez, representa a inocência corrompida: vendida pela mãe para garantir a sobrevivência da família, ela é o retrato da juventude sacrificada no altar da necessidade.
Cada personagem feminina em Harlots é uma camada de resistência, dor e desejo. A série não se furta em mostrar suas contradições, suas escolhas difíceis e suas estratégias de sobrevivência em um mundo que insiste em negá-las como sujeitos de sua própria história.
A riqueza visual de Harlots é um espetáculo à parte. Os figurinos, assinados por Edward K. Gibbon, são uma ode ao barroco tardio, com vestidos de seda, espartilhos ornamentados e perucas monumentais que contrastam com a sujeira das ruas e a miséria das classes baixas. A série não romantiza o passado: a Londres que vemos é suja, barulhenta, vibrante — um organismo vivo que pulsa com promiscuidade e perigo.
As locações, muitas filmadas em Hertfordshire e em estúdios que recriam com precisão a arquitetura georgiana, contribuem para a imersão total do espectador. A iluminação, muitas vezes à luz de velas, e os tons sépia e dourado da fotografia evocam a atmosfera opressiva e sensual da época. Os efeitos especiais são discretos, mas eficazes, usados com parcimônia para acentuar a violência ou a decadência, sem jamais roubar a cena da dramaturgia.
Embora Harlots seja uma das poucas séries a mergulhar com profundidade na vida de mulheres marginalizadas do século XVIII, ela não está sozinha. Abaixo, uma breve linha do tempo de produções que, como ela, ousaram dar voz às silenciadas:
Embora poucas séries se aventurem diretamente no século XVIII com foco em mulheres abusadas, Harlots abre caminho para uma nova forma de contar histórias históricas: com as mulheres no centro, não como vítimas, mas como protagonistas de sua própria revolução.
Harlots não é uma série sobre sexo. É uma série sobre poder. Sobre como, em uma sociedade que negava às mulheres qualquer forma de autonomia, elas encontraram no corpo — e na astúcia — uma forma de existir, resistir e, por vezes, vencer. É uma narrativa que incomoda, provoca e fascina. E que, ao final de cada episódio, nos deixa com a sensação de que, por trás de cada espartilho apertado, há uma história que merece ser contada.
Se o século XVIII foi cruel com suas mulheres, Harlots é a resposta tardia — mas necessária — a esse silêncio histórico.
Uma série que não pede desculpas por mostrar a sujeira, o sangue e o desejo. Porque, afinal, como diz Margaret Wells: “O dinheiro é o único poder das mulheres nesse mundo”. E ela sabia exatamente como usá-lo.
Assista ao trailer da 1a. temporada da série Harlots: