Desde a cena inaugural — que se abre com o olhar atento de Joanne, sentada numa cafeteria de Los Angeles, ajustando o microfone de seu podcast enquanto observa os transeuntes com uma curiosidade quase antropológica — Ninguém Quer (Nobody Wants This, 2025) estabelece seu tom com precisão cirúrgica. Trata-se de uma série que se apresenta como comédia romântica, mas rapidamente se revela um ensaio audiovisual sobre fé, desejo, pertencimento e as fraturas culturais do nosso tempo.
Criada por Erin Foster, a série poderia facilmente ser engolida pela prateleira das “rom-coms modernas” se não fosse seu compromisso com a complexidade. A relação central — entre uma mulher agnóstica, sexualmente franca e intelectualmente cética, e um rabino judeu progressista — não serve apenas como motor narrativo, mas como campo simbólico onde disputas históricas, afetivas e identitárias se chocam.
O mérito maior da primeira temporada de Ninguém Quer está em sua recusa à caricatura. Joanne (Kristen Bell) não é apenas espirituosa ou autoconsciente: ela é uma mulher que construiu sua identidade a partir da observação crítica das relações, das falhas emocionais e das promessas não cumpridas do amor romântico. Seu podcast sobre sexo e relacionamentos não é apenas um trabalho — é uma trincheira.
Noah (Adam Brody), por sua vez, subverte expectativas desde a primeira aparição. Rabino jovem, carismático e avesso à rigidez dogmática, ele representa uma fé em movimento, tensionada entre tradição e mundo contemporâneo. Noah não encarna a religião como autoridade, mas como herança viva, permeada por dúvida, humor e empatia.
Os personagens coadjuvantes ampliam esse universo com densidade emocional. Morgan, irmã de Joanne, interpretada por Justine Lupe, funciona como um contraponto visceral: uma mulher prática, afetivamente pragmática, que equilibra ambições profissionais, expectativas familiares e a tensão moral de apoiar um relacionamento que desafia convenções sociais e religiosas. Longe de ser apenas apoio narrativo, Morgan traduz o olhar externo que questiona, provoca e expõe as fragilidades da protagonista.
Figuras como Sasha (Timothy Simons) e Esther (Jackie Tohn) enriquecem a trama ao encarnar diferentes formas de pertencimento, insegurança e fidelidade à tradição. São personagens que poderiam facilmente resvalar para o estereótipo, mas que a série trata com humanidade, humor e precisão psicológica.
Ninguém Quer é, antes de tudo, uma série profundamente feminista — não por slogans, mas por estrutura narrativa. Joanne não é definida pelo amor que recebe ou rejeita, mas pela forma como constrói sua própria voz. Seu desejo não é punido; sua autonomia não é narrativamente corrigida.
A série entende o feminismo como prática cotidiana: na maneira como Joanne negocia expectativas sociais, resiste à romantização do sofrimento feminino e se recusa a adaptar sua identidade para caber em moldes afetivos pré-existentes. O amor, aqui, não é redenção; é risco.
Ao permitir que sua protagonista permaneça contraditória, indecisa e intelectualmente inquieta, a série rompe com a tradição das comédias românticas que exigem, ao final, a domesticação emocional da mulher. Joanne não precisa “aprender a amar direito” — ela aprende, sobretudo, a não trair a si mesma.
A religião judaica em Ninguém Quer não é um adereço narrativo, mas uma estrutura viva de pertencimento. A fé de Noah é apresentada como herança cultural, espiritual e comunitária — algo que transcende a crença individual e se manifesta em rituais, expectativas familiares e responsabilidades simbólicas.
O relacionamento entre Noah e Joanne expõe tensões reais enfrentadas por casais inter-religiosos: a questão da continuidade cultural, o peso das tradições, o olhar da comunidade e o medo silencioso de ruptura. A série aborda essas questões com delicadeza, evitando tanto a idealização quanto o conflito fácil.
Importante notar que Ninguém Quer não coloca a religião como obstáculo a ser superado, mas como linguagem própria — uma forma de estar no mundo que precisa ser compreendida, negociada e, às vezes, respeitada à distância.
A trajetória de Joanne pode ser lida como uma releitura contemporânea da jornada do herói — ou, mais precisamente, da jornada da heroína. Seu arco não envolve conquistas externas, mas deslocamentos internos: da ironia defensiva à vulnerabilidade consciente.
O grande conflito não é “ficar ou não com Noah”, mas decidir até que ponto é possível amar sem abdicar da própria visão de mundo. Noah não surge como salvador nem como antagonista; ele é o espelho que obriga Joanne a encarar seus limites emocionais.
A série entende que maturidade afetiva não significa certeza, mas coragem para sustentar a dúvida.
Ninguém Quer dialoga com uma linhagem contemporânea de narrativas que exploram relações atravessadas por diferenças culturais, religiosas e sociais. Há ecos de Fleabag, na franqueza emocional; de Master of None, na atenção às tensões interculturais; e de Transparent, na abordagem da tradição judaica como identidade viva.
Ainda assim, a série constrói sua singularidade ao fundir romance, humor e reflexão religiosa sem hierarquizar essas camadas. O amor não anula a tradição; a tradição não silencia o desejo.
Visualmente, Ninguém Quer opta pela intimidade. Los Angeles surge menos como cartão-postal e mais como espaço de encontros cotidianos: cafeterias, apartamentos, sinagogas, salas de gravação. A cidade funciona como extensão emocional dos personagens.
O figurino reforça essa lógica narrativa. Joanne veste roupas que comunicam autonomia e informalidade urbana, enquanto Noah transita entre o casual moderno e o simbólico tradicional. Não há excesso nem espetáculo: tudo serve à construção de identidade.
Os poucos efeitos visuais são discretos, quase invisíveis — usados para ampliar atmosferas emocionais, jamais para distrair.
A primeira temporada foi amplamente reconhecida pela crítica. Em 2025, Ninguém Quer recebeu indicações ao Primetime Emmy Awards, incluindo Melhor Série de Comédia, Melhor Atriz (Kristen Bell) e Melhor Ator (Adam Brody).
Também figurou entre os destaques do ano em listas de veículos como Variety, The Hollywood Reporter e The Guardian, consolidando-se como uma das comédias mais inteligentes e relevantes da temporada.
Ninguém Quer não promete finais fáceis nem certezas confortáveis. Seu maior gesto é recusar a simplificação. Amar, a série sugere, é aceitar a coexistência entre desejo e medo, tradição e ruptura, fé e dúvida.
Ao final da temporada, não saímos com respostas, mas com perguntas mais sofisticadas. E talvez seja exatamente isso que torna essa série tão necessária: ela entende que, no mundo contemporâneo, ninguém quer apenas amar — queremos compreender o que estamos dispostos a transformar para isso.