O cinema tem uma estranha habilidade de nos confrontar com aquilo que preferimos ignorar. A Noite Sempre Chega (Night Always Comes, 2025), dirigido por Benjamin Caron e estrelado por Vanessa Kirby, é um desses filmes que não se contentam em entreter: ele nos arrasta para dentro de uma realidade incômoda, onde o desespero feminino se torna combustível narrativo e a noite, mais do que cenário, é metáfora da opressão. Adaptado do romance homônimo de Willy Vlautin, publicado em 2021, o longa não é uma história real em sentido estrito, mas carrega em sua espinha dorsal a veracidade brutal das crises urbanas, da precariedade econômica e da fragilidade do sonho americano. É ficção, sim, mas uma ficção que sangra realidade.
Vanessa Kirby encarna Lynette com uma intensidade que beira o insuportável. Sua personagem não é heroína nem vilã: é uma mulher comum, esmagada por dívidas, pela iminência do despejo e pela responsabilidade de proteger um irmão vulnerável. Kirby constrói Lynette como uma figura contraditória, capaz de ternura e violência, de fragilidade e brutalidade. É nesse paradoxo que reside a força do filme: a protagonista não é símbolo, é carne. Ao lado dela, Zack Gottsagen interpreta Kenny, o irmão com deficiência intelectual, cuja inocência funciona como contraponto à dureza da trama. Jennifer Jason Leigh, como a mãe, completa o triângulo familiar, oscilando entre resignação e esperança, reforçando o peso da herança emocional que aprisiona todos.
A produção é um espetáculo de realismo sombrio. Filmado em locações reais de Portland, o longa captura a decadência das periferias urbanas com uma fotografia que privilegia tons frios, cinzas e azuis, mergulhando o espectador em uma atmosfera sufocante. Os figurinos são despojados, quase invisíveis, reforçando a precariedade econômica dos personagens. Não há glamour, apenas roupas que parecem ter sido arrancadas de armários comuns, como se a câmera tivesse invadido vidas reais. Os efeitos visuais são discretos, mas pontuais: quando a violência explode, ela não é estilizada, mas crua, quase documental. O resultado é uma estética que incomoda, porque não permite distância emocional. O espectador é cúmplice, não visitante.
Comparar A Noite Sempre Chega com outros filmes que retratam mulheres em luta contra o despejo ou a miséria é inevitável. Há ecos de 99 Homes (2014), onde famílias são expulsas pela crise imobiliária, e de Nomadland (2020), que transformou a sobrevivência feminina em poesia nômade. Mas Caron escolhe outro caminho: o thriller urbano. Se Nomadland nos oferecia contemplação, A Noite Sempre Chega nos oferece urgência. Lynette não vaga, ela corre. Não há tempo para metáforas suaves; há apenas a noite, o submundo criminal e a necessidade de dinheiro imediato. Nesse sentido, o filme se aproxima mais de um suspense do que de um drama social, mas sem perder a crítica feroz às desigualdades que o sustentam.
A recepção crítica foi mista, mas sempre apaixonada. No IMDb, o filme recebeu 5,9/10, com elogios à atuação de Kirby, considerada visceral e transformadora. No AdoroCinema, a nota foi 3,0/5, destacando a força dramática da protagonista e a fidelidade à obra literária. Alguns críticos apontaram a narrativa como excessivamente sombria, quase claustrofóbica, mas é justamente esse sufocamento que dá ao filme sua relevância. Ele não quer ser confortável. Ele quer ser um soco. E conseguiu, ao menos, conquistar um prêmio internacional em circuito independente, prova de que sua ousadia encontrou eco.
Historicamente, o cinema tem se dedicado a retratar mulheres em luta contra forças sociais que ameaçam suas famílias. De Silkwood (1983), onde a protagonista enfrenta corporações para proteger sua vida e a de seus colegas, passando por Safe (1995), que expõe a vulnerabilidade feminina diante de crises financeiras e de saúde, até chegar a Nomadland e 99 Homes, a trajetória é clara: o despejo, a dívida, a precariedade são temas recorrentes. A Noite Sempre Chega insere-se nessa linha, mas com uma diferença crucial: sua protagonista não apenas enfrenta o sistema, ela mergulha no submundo criminal para tentar vencê-lo. É uma escolha narrativa que radicaliza a tradição e a torna mais visceral.
A Noite Sempre Chega não é um filme para ser visto em busca de conforto. É um filme para ser enfrentado. Ele nos lembra que a noite, no cinema e na vida, nunca chega sozinha: traz dívidas, fantasmas e escolhas impossíveis. Lynette é o retrato de uma geração esmagada pela desigualdade, e sua luta é tão perturbadora quanto necessária. O longa provoca, incomoda e seduz, deixando claro que, no fim, a sobrevivência feminina é espetáculo e denúncia ao mesmo tempo. E talvez seja justamente esse desconforto que o torna inesquecível.
Assista ao trailer do filme A Noite Sempre Chega (Night Always Comes)