Em 2025, A Melhor Mãe do Mundo irrompe no cinema nacional como um soco delicado no estômago — um drama cru, urgente, feito para acordar quem ainda finge não ver. Dirigido com pulso firme por Anna Muylaert, o filme acompanha a trajetória de Gal (vivida por Shirley Cruz), catadora de recicláveis, que, num ato extremo de coragem, abandona a violência doméstica e parte pelas ruas de São Paulo com seus dois filhos pequenos — Rihanna e Benin — empurrando uma carroça de material reciclado, transformando o medo em “aventura”. A narrativa, de uma simplicidade brutal e dolorosa, revela-se uma metáfora poderosa da resistência materna, da desigualdade e da urgência de enxergar a periferia.
Apesar da veia documental que pulsa em A Melhor Mãe do Mundo, o longa não se declara explicitamente inspirado em uma história real. O roteiro é assinado por Muylaert em colaboração com Grace Passô e Mariana Jaspe.
Mas isso não diminui sua força social — ao contrário: o filme se torna emblemático exatamente por reunir num só retrato vários fragmentos da realidade de milhares de mulheres no Brasil: mães negras, periféricas, invisibilizadas, que vivem da reciclagem, que tentam escapar da violência e proteger os filhos com o que têm de mais precioso: o amor e a coragem. Em entrevista para a imprensa, Muylaert refletiu sobre isso: “essa mãe é também um personagem político — completamente abandonada pelo Estado” e que, na tela, busca reconstruir dignidade através da solidariedade comunitária.
Portanto, mais do que “baseado numa história real”, o filme funciona como síntese simbólica de realidades invisíveis, tornando-se urgente e universal.
A força emocional de A Melhor Mãe do Mundo repousa no desenvolvimento cuidadoso de seus personagens centrais — sobretudo de Gal.
Gal: é o coração e a alma da obra. No início, ela carrega o peso exaustivo da vida: trabalho duro, invisibilidade social, medo, abuso doméstico. Quando decide fugir, não é apenas uma fuga física, mas uma tentativa de reconstrução — de si mesma como mãe, mulher, mulher preta, catadora. A transformação dela não é mágica nem imediata: a cada dia nas ruas, fica mais visível o cansaço, o desamparo, mas também a determinação. Ao mesmo tempo, a ternura que ela demonstra com os filhos — fazendo da fuga uma “aventura” — revela a urgência de preservar a infância, a inocência, mesmo em meio à brutalidade.
Rihanna e Benin (as crianças): através de seus olhares, o espectador sente a vulnerabilidade, o medo, mas também a esperança. A forma como a mãe cria narrativas de proteção — transformando medo em jogo, abandono em viagem — torna visível o poder da imaginação, do afeto, da resiliência infantil.
Leandro (o marido, interpretado por Seu Jorge): a presença dele — ainda que o foco não seja um retrato aprofundado de sua vida — simboliza a violência institucionalizada e doméstica como parte de um ciclo perverso. Sua figura, quando aparece, enche a sala de uma tensão latente, quase sufocante.
Atrás das câmeras, esse arco humano ganha ainda mais densidade: é a dor de Gal, o silêncio das crianças, a dureza da rua — tudo isso dramatizado sem melodrama barato, com uma sensibilidade que evita os clichês e impõe verdade. A maternidade, nesse contexto, não é glamour — é sobrevivência, é memória, é luta.
A riqueza da produção de “A Melhor Mãe do Mundo” é evidente desde o pôster até a fotografia, passando por figurinos e direção de arte. Filmado nas ruas de São Paulo — com locações reais — o filme imprime uma textura quase documental, que aproxima a ficção da vida real.
Os figurinos de Gal e das crianças — roupas simples, surradas, manchadas — contam tanto da pobreza quanto da dignidade que insiste em permanecer. A carroça de recicláveis, com seus sacos plásticos, materiais diversos, funciona como uma extensão simbólica da protagonista: ela carrega tudo o que a sociedade descarta, e dali sai a possibilidade de reconstrução.
A fotografia de Lílis Soares acentua contrastes — luz e sombra, dia e noite, clareza e penumbra — reforçando a atmosfera de risco, de instabilidade, mas também de esperança. A trilha sonora, assinada por André Abujamra e George Nahssen, acompanha com sobriedade: poucas notas, silêncios potentes, barulhos urbanos que transformam-se em ritmo dramático.
O conjunto cria uma cinematografia que exige do espectador: não é escapismo, nem conforto — é imersão dolorosa, mas necessária. A produção traduz visualmente a precariedade, mas também a coragem, e consegue fazer da rua um palco de resistência.
À primeira vista, “A Melhor Mãe do Mundo” e “A Vida é Bela” (La vita è bella, 1998) — dirigido por Roberto Benigni — parecem filmes longe um do outro: contextos, nacionalidades, tragédias diferentes. Mas o paralelo é profundo.
Ambos os filmes compartilham um ingrediente central: o instinto protetor, o uso da imaginação como escudo, a construção de uma fantasia para preservar a inocência em meio ao horror real. A diferença fundamental está no tom: “A Vida é Bela” mistura humor e tragédia, alcançando universais de dor e esperança; “A Melhor Mãe do Mundo” — embora carregado de lirismo — não suaviza a realidade: ela a expõe. E talvez justamente por isso choque com mais força.
Esse contraste revela algo essencial: o amor familiar, quando genuíno, transcende contexto — guerra, miséria, abandono — e se transforma em ato político.
A Melhor Mãe do Mundo insere-se em uma tradição cinematográfica de retratos de mulheres que, por motivos sociais, precisam lutar, muitas vezes sozinhas, para salvar a família. Filmar essa realidade não é confortável — é urgente.
Entre outros exemplos, temos:
Benzinho (2018): retrata uma mãe que tenta sustentar a família e lidar com o amadurecimento dos filhos em meio a tensões econômicas.
Real Women Have Curves (2002): embora em contexto diferente, enfoca as dificuldades de uma jovem latina diante da pressão econômica e de expectativas familiares, retratando uma mulher lutando por dignidade e autonomia.
Por isso, a relevância de “A Melhor Mãe do Mundo” não está apenas na qualidade artística — mas na visibilidade que dá a mulheres pretas, periféricas, mães solo, trabalhadoras informais. Filmes assim funcionam como espelhos sociais: refletem vidas invisíveis e transformam o espectador em testemunha. Nesse sentido, o longa de Anna Muylaert honra e amplia uma tradição de narrativas que colocam mulheres no centro da dor, da luta e da esperança.
Desde a sua estreia mundial na 75ª edição do Berlin International Film Festival (Berlinale) em fevereiro de 2025, A Melhor Mãe do Mundo vem conquistando público e crítica.
Segundo reportagens, o filme já acumulou prêmios de roteiro, fotografia, edição, atuação — um reconhecimento plural que atesta a força não só da história, mas da execução: roteiro sensível, direção eficiente, atuações potentes, estética visual contundente.
Nas falas da própria atriz Shirley Cruz, o filme representa “um papel que sempre sonhei fazer” — e que ecoa para tantas mulheres “pretas, mães, catadoras, invisíveis”.
Essa timeline revela um padrão recorrente: diante da desigualdade, da violência, da invisibilidade social — a maternidade como ato de resistência.
A Melhor Mãe do Mundo não é um filme confortável — e nem tenta ser. Ele nos devolve imagens que muitas vezes preferimos ignorar: crianças nas ruas, mães invisíveis, susto, abandono. Mas, ao mesmo tempo, devolve dignidade, humanidade e urgência. A fuga de Gal não é um drama escapista — é uma denúncia silenciosa de quem carrega o peso da desigualdade nas costas.
Enquanto A Vida é Bela usou o humor e a fantasia para suavizar a barbárie da guerra, este filme brasileiro usa a crueza da rua, o suor, o medo, a força silenciosa de uma mulher que se recusa a desistir. Ele nos obriga a olhar — e a sentir.
Quem assistir A Melhor Mãe do Mundo sai incomodado, talvez com o nó na garganta. E essa angústia pode ser o início de algo maior: empatia, reflexão, ação social. Porque, como diz a diretora, “essa mãe é um personagem político”. Não é apenas sobre uma mulher — é sobre todas nós.
Esse filme nos lembra: não existe maternidade sentimental, suave — existe maternidade de carne, osso, barro e luta. E talvez seja precisamente esse o retrato mais real, mais urgente, mais humano que o cinema contemporâneo precisa.
Assista ao trailer do filme A Melhor Mãe do Mundo: