Em 1979, sob o pseudônimo Richard Bachman, Stephen King publicou A Longa Marcha, um dos romances mais sombrios e existencialistas de sua carreira. Quase meio século depois, a história ganha vida nas telas com A Longa Marcha – Caminhe ou Morra (2025), dirigido por Francis Lawrence (Jogos Vorazes, Eu Sou a Lenda) e roteirizado por J.T. Mollner. A adaptação cinematográfica não apenas atualiza a narrativa para um público contemporâneo, mas também intensifica sua crítica à espetacularização da dor, à desumanização institucional e à cultura do entretenimento como controle social.
Em um futuro distópico, os Estados Unidos vivem sob um regime autoritário que realiza anualmente uma competição brutal chamada A Longa Marcha. Cem adolescentes são convocados para caminhar sem parar, mantendo uma velocidade mínima de 3 milhas por hora. Quem desacelera, tropeça ou tenta descansar recebe um aviso. Após três avisos, é executado sumariamente por soldados armados. O último sobrevivente ganha “tudo o que desejar pelo resto da vida”.
Ray Garraty (Cooper Hoffman), o protagonista, é um dos selecionados. Ao lado de outros jovens como Peter McVries (David Jonsson) e Stebbins (Garrett Wareing), ele embarca em uma jornada física e psicológica que revela os limites da resistência humana — e da própria civilização.
O filme dialoga diretamente com a lógica dos reality shows modernos. Assim como em Big Brother Brasil, A Fazenda ou Survivor, há uma estrutura de competição, eliminação e voyeurismo. A diferença? Aqui, a punição é a morte. Mas o mecanismo é o mesmo: o público acompanha, torce, julga e consome o sofrimento como entretenimento.
A crítica é explícita. Em uma das cenas mais impactantes, após a execução de um participante, a câmera mostra uma família assistindo à transmissão com pipoca no colo. A naturalização da violência é tão profunda que os espectadores já não reagem — apenas consomem.
Essa abordagem ecoa o conceito de “rituais de sofrimento” descrito pela socióloga Silvia Viana, que vê nos reality shows uma forma de dominação simbólica. A Longa Marcha leva essa ideia ao extremo, transformando o espetáculo em carnificina institucionalizada.
A principal diferença entre o livro e o filme está no desfecho. No romance original, Ray Garraty é o último sobrevivente. Após ver seus colegas tombarem um a um, ele continua marchando rumo a uma figura misteriosa no horizonte, ignorando até mesmo o Major — comandante da marcha — e o prêmio prometido. O final é aberto, metafísico, quase alucinatório. Garraty não vence; ele apenas continua, como se a marcha fosse eterna.
No filme, o vencedor é Peter McVries. Após salvar Garraty em diversas ocasiões, McVries assiste à morte do amigo e decide usar seu “desejo” para vingar os demais: ele assassina o Major em público. O gesto rompe com a nobreza que McVries carregava e simboliza a quebra total da moral. O final é fechado, violento e catártico — substitui a abstração por ação.
Essa mudança altera o tom da obra. Se o livro termina com uma pergunta (“Por que continuamos marchando?”), o filme termina com uma resposta brutal (“Porque ninguém nos impediu”).
A Longa Marcha compartilha DNA com várias histórias de King:
Carrie (1974): Assim como Carrie White, os participantes da marcha são adolescentes submetidos à crueldade institucional e ao julgamento público. A explosão de violência é uma resposta à opressão acumulada.
O Iluminado (1977): O desgaste psicológico dos personagens lembra o isolamento e a deterioração mental de Jack Torrance. A estrada infinita da marcha é tão claustrofóbica quanto o Hotel Overlook.
It – A Coisa (1986): A infância como campo de batalha. Em It, o mal assume a forma de um palhaço; em A Longa Marcha, o mal é o Estado, a plateia e a própria marcha.
À Espera de um Milagre (1996): A execução como espetáculo. A morte é ritualizada, burocratizada, e o público assiste com indiferença — ou prazer.
King sempre explorou a banalização do mal. Em A Longa Marcha, ele faz isso sem monstros sobrenaturais. O monstro é humano, institucional e coletivo.
Escrito durante a década de 1960, A Longa Marcha nasceu em meio à Guerra do Vietnã e à presidência de Richard Nixon. O medo do alistamento compulsório, a apatia estatal e a repressão militar moldaram a visão de mundo de King — que escapou da guerra por sorte, ao tirar um número alto na loteria do recrutamento.
O livro reflete esse clima. Os jovens da marcha são convocados, se despedem das famílias e partem rumo ao desconhecido. A marcha é uma metáfora do alistamento militar: uma jornada sem propósito, onde a morte é certa e a glória é ilusória.
O Major, interpretado por Mark Hamill no filme, representa o poder autoritário. Ele nunca marcha, nunca se cansa, nunca se expõe. Apenas comanda, julga e executa. É a personificação do Estado que envia jovens à guerra sem jamais pisar no campo de batalha.
Francis Lawrence transforma a dor em metáfora. Em uma cena poderosa, após o suicídio de um jovem, a câmera corta para cavalos correndo livres. A imagem remete ao filme They Shoot Horses, Don’t They? (1969), onde dançarinos exaustos competem até a morte. A liberdade dos cavalos contrasta com a prisão dos marchadores — e com a natureza sacrificada da juventude.
Outra cena marcante mostra Garraty tentando parar, mas sendo empurrado por McVries. A amizade é, ao mesmo tempo, salvação e condenação. Ninguém quer morrer, mas também ninguém quer vencer sozinho.
O filme é dirigido por Francis Lawrence, conhecido por sua habilidade em adaptar distopias com profundidade emocional. O roteiro de J.T. Mollner mantém a essência do livro, mas atualiza o ritmo e os diálogos para um público acostumado com narrativas visuais intensas.
O elenco é liderado por Cooper Hoffman (Ray Garraty), David Jonsson (Peter McVries) e Garrett Wareing (Stebbins). Mark Hamill brilha como o Major, trazendo uma presença imponente e perturbadora.
Stephen King atuou como produtor executivo e aprovou as mudanças no roteiro, incluindo o novo final. Em entrevista, ele afirmou: “Adorei o que fizeram. É diferente, mas verdadeiro.”
A Longa Marcha – Caminhe ou Morra é mais do que uma adaptação. É uma releitura crítica de uma obra que continua assustadoramente atual. Em um mundo onde a dor é espetáculo, onde jovens são sacrificados por sistemas que não os veem como humanos, a marcha nunca termina.
O filme nos obriga a perguntar: estamos assistindo ou participando? Estamos torcendo ou ignorando? E, acima de tudo, estamos marchando — mesmo sem perceber?
Stephen King escreveu A Longa Marcha como um jovem tentando entender o mundo. Em 2025, o mundo ainda não respondeu. Mas o filme nos lembra que, enquanto houver plateia, haverá marcha.
Assista ao trailer do filme A Longa Marcha: