No thriller distópico 40 Acres, dirigido por R.T. Thorne, somos transportados para um futuro devastado por pandemia, fome e guerra civil. É um mundo onde a agricultura — especialmente a posse da terra — tornou-se o recurso mais valioso. No centro dessa narrativa está a família Freeman, descendentes de agricultores negros que, séculos antes, migraram para o Canadá após a Guerra Civil Americana. Essa conexão histórica não é meramente simbólica: o título do filme evoca diretamente a promessa de “40 acres e uma mula” feita aos ex-escravizados após a Guerra Civil, uma promessa quebrada que reverbera como cicatriz na psique americana.
Mas 40 Acres não é só uma fantasia sobre o fim dos tempos. Para o diretor Thorne, é um aviso velado e uma afirmação de identidade: saber de onde viemos é fundamental para entender para onde vamos. Em suas próprias palavras, ele declara que “para sobreviver … temos que entender nossa história” — e, no caso dos Freeman, a própria sobrevivência física está entrelaçada à herança cultural, linguagem ancestral, práticas agrícolas tradicionais e valores comunitários que resistiram a séculos de apagamento.
Embora 40 Acres se desenrole num futuro fictício, o filme está profundamente ancorado em traumas e promessas históricas. A ideia dos “quarenta acres” faz referência à Special Field Order No. 15 emitida pelo general Sherman em 1865, propondo dar parcelas de terra (40 acres) a ex-escravizados. Essa promessa, no entanto, foi revogada posteriormente, deixando um legado de injustiça econômica e cultural.
Portanto, o filme não se baseia em uma história real específica — ou seja, não retrata personagens históricos —, mas é construído sobre um substrato simbólico real e doloroso: a promessa nunca cumprida de reparação pós-Guerra Civil. Thorne articula exatamente isso ao afirmar que o título é uma homenagem direta a essa peça trágica da história negra americana. Desse modo, 40 Acres transforma a metáfora da promessa quebrada em matéria viva, fazendo do terreno da fazenda dos Freemans um relicário político, espiritual e existencial.
No coração da narrativa reside Hailey Freeman, interpretada por Danielle Deadwyler. Ex-militar, ela lidera a família com disciplina rígida, como uma general que treina seus filhos para resistir não apenas ao ataque externo, mas ao desespero interno. Cria-os com estratégias de sobrevivência: armas, radios, comunicação codificada — porque, para Hailey, a ignorância é tão mortal quanto a escassez.
Galen, seu parceiro, traz uma camada ancestral distinta: ele é indígena, e cultiva a língua Cree entre os membros da família, reforçando uma herança mista. Para ele, preservar a língua dos antepassados significa resistir ao apagamento cultural.
Os filhos, por sua vez, representam diversas gerações de tensão. Emanuel/Manny, o filho mais velho (Kataem O’Connor), está no limiar da adolescência e da independência. Ele questiona a rigidez da mãe, ansiando por conexão com o mundo exterior — um dilema universal, mas intensificado pelo contexto ameaçador. Suas irmãs — uma das quais, Danis, celebra sua entrada como “soldado” — simbolizam a próxima geração, igualmente treinada para se defender, mas também para manter viva a tradição familiar. Há também Raine e a pequena Cookie, que fortalecem o sentido familiar e comunitário.
O conflito externo — milícias organizadas e canibais — serve como catalisador para conflitos internos: até onde se deve isolar-se para sobreviver? Quais sacrifícios são justificáveis? A tensão entre instinto guerreiro e o desejo de conexão humana é o motor emocional do filme.
Apesar de ser uma produção independente (com orçamento mais modesto), 40 Acres impressiona pela riqueza visual. A cinematografia, segundo críticos, usa luz natural para reforçar a sensação de abandono e escassez, alternando amplas vistas da fazenda com closes opressivos de tensão e vigilância.
A fazenda — o núcleo central — é praticamente o personagem mais importante: uma construção em madeira sólida, cercada por campos cultivados (ou moribundos), com celeiro, casa grande e silos esparsos. Ela funciona como reduto, lar e fortaleza.
Os figurinos espelham a dureza da sobrevivência: roupas práticas, resistentes, impregnadas de poeira. Hailey, por exemplo, usa uniformes quase militares, botas robustas, cintos utilitários. Os filhos têm peças que misturam trajes de trabalho rural, coletes táticos e roupas de caça — uma fusão de fazenda tradicional com vestuário de guerra.
Quanto aos efeitos, o filme não depende de CGI extravagante: a escassez (de animais, comida), o silêncio opressor e a ameaça constante são transmitidos com sutileza por som, design de produção e a encenação de embates realistas. Em momentos de violência, a trilha sonora e a mixagem de som trabalham para amplificar ruídos simples — passos, tiros, o crepitar de fogo — criando uma atmosfera crua e imersiva.
Embora 40 Acres projete essa herança histórica para um futuro ficcional, o cinema já abordou diversas vezes a experiência negra durante a Guerra Civil ou seus desdobramentos. Filmes que retratam essa fase são fundamentais para entender como a memória da escravidão e da luta pela liberdade molda nossa compreensão contemporânea.
Aqui está uma linha do tempo editorial com alguns títulos representativos:
Esses filmes, entre outros, ajudam a traçar uma trajetória cinematográfica na qual a guerra, a escravidão e a reconstrução dos Estados Unidos são vistos sob a lente da experiência negra — não apenas como vítimas, mas como agentes ativos de sua própria liberdade.
O que torna 40 Acres tão provocador é como ele conecta passado e futuro, memória e urgência. Não é apenas um filme de sobrevivência; é uma fábula política sobre reparação simbólica. A família Freeman defende terreno — sim —, mas defende também sua identidade, sua espiritualidade e seus laços ancestrais. Em um mundo pós-colapso, a promessa de “40 acres” torna-se mais do que terra: torna-se resistência.
Thorne lembra que, para as comunidades negras (e indígenas), a cultura, a língua, a arte, os rituais agrícolas — esses não são apenas vestígios do passado. Eles são ferramentas de sobrevivência. E, em tempos de ressurgimento de revisionismos históricos e de negação da reparação, o filme funciona como um lembrete potente: o que não é entendido — o que não é recordado — tende a se repetir.
Mesmo em um mundo onde animais já não existem, em que a escassez assolou todos os cantos da civilização, os Freemans mantêm algo que vai além da própria sobrevivência: mantêm a chama da promessa quebrada, da herança que resiste à destruição. 40 Acres nos lembra que não basta sobreviver — é preciso preservar, recordar, lutar. E, talvez, renegociar promessas antigas com olhos firmes no futuro.
A força desse filme está em sua coragem simbólica: ele nos convida a imaginar um futuro em que a justiça histórica não é apenas uma lembrança, mas uma raiz viva que floresce, mesmo no solo mais árido.
Assista ao trailer do filme 40 Acres: